segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Fernando Sabino e a tradição da crônica

Herman Melville, em seu monumental Moby Dick, escreveu, no capítulo cento e quatro do livro, segundo a tradução de Pericles Eugênio da Silva Ramos: “Para escrever um livro imenso, tendes de escolher um tema enorme. Nenhum volume grandioso e duradouro poderá jamais ser escrito sobre a pulga, embora muitos já o hajam tentado”. [1] Obviamente, não se pode descontextualizar uma afirmação, seja ela literária, seja ela não literária. Quando se descontextualiza, pode-se fazer injustiça para com a afirmação ou para com quem a tenha feito. Sejamos justos com Herman Melville. Moby Dick é um livro do século XIX, período em que as conquistas artísticas do século XX praticamente nem haviam se insinuado. Sim, Moby Dick é suntuoso, ambicioso, grandioso, grandiloquente. Mas o que poderia ser dito, digo, não de uma pulga, mas de algum freguês de alguma taverna frequentada por Ismael, o narrador de Moby Dick? Quais seriam os dramas desse frequentador? Que mares já teria ele navegado? Do que ele sentia saudade? Quantos sonhos deixou para trás? Qual a bebida favorita dele? Preferia ele o verão ou preferia sair de viagem logo pela manhã? Ismael não está interessado nisso que poderia ser considerado questões menores diante do assunto literalmente gigantesco que escolheu para tratar. Todavia, é também na vida do homem “menor” que a crônica, tal qual será abordada neste trabalho, está interessada. Deixemos de lado, por ora, as estupendas digressões de Ismael. Passemos a outro tipo de digressão. Falemos, a princípio, da crônica como gênero literário.

Em sua essência, parte-se do pressuposto de que a crônica é, antes de tudo, um gênero cujo texto é breve. Isso porque, em sua história, a crônica como tratada aqui, não a crônica dos navegadores e seus relatos, nasce para ser veiculada em jornal. Não ao modo de um romance cujos capítulos vão sendo publicados pouco a pouco por algum periódico, mas à maneira de um texto que começa e que logo termina. É um texto breve, mas essa brevidade abarca o começo, o meio e o fim do que se diz. Amanhã é um novo dia; um novo dia pede uma nova crônica. É um gênero escrito no calor dos acontecimentos, na urgência que pedem as redações, que, não raro, estão a pressionar o cronista para que ele entregue a crônica, não importa se é um texto diário ou um semanal.

Sempre que o assunto é a crônica, não raro, paira a ideia, o questionamento ou a sugestão de que ela seria um gênero menor. Ora, mas o mero uso do adjetivo “menor” para se referir ao gênero crônica implica o outro lado da moeda, ou seja, implica a existência de gênero ou de gêneros considerados maiores. E quando se considera haver gêneros maiores, remete-se à clássica divisão grega, aristotélica. Todavia, estamos agora tratando da crônica, um gênero híbrido, escorregadio, sem regras claras. Afinal, dizer que a crônica é um texto breve geralmente veiculado em jornal é definição que não é capaz de precisá-la. Se tentarmos fechar o cerco a fim de se achar uma definição para a crônica, pode ser que não achemos uma só, pode ser que não haja unanimidade. Todavia, ainda que considerada por alguns literatura menor, importa-nos o seguinte na expressão “literatura menor”: deixar de lado o adjetivo “menor” e nos concentrarmos no substantivo “literatura”.

Sim, a crônica é literatura. Que este texto sirva também de argumento meu a favor do que afirmei na frase anterior. Por ser literatura, ela consegue, de antemão, tornar-se atemporal. O que a torna atemporal é o fato de ela se debruçar sobre um aspecto da realidade que é permeado por aquilo que temos de subjetivo, por aquilo que somos, por aquilo que sentimos, aquilo que compõe as experiências cotidianas por que passamos. Fenômeno nascido com a popularização da imprensa no século XIX, a crônica tem, como estrela, no mais das vezes, o cidadão urbano, “anônimo”. Para me valer de nome de personagem criado por Drummond, que também era cronista, a crônica, não raro, debruça-se sobre um João Brandão qualquer, que transita em meio aos demais, como se fosse mais um. Só que para a crônica ninguém é só mais um, seja na multidão, seja no escuro de um quarto solitário madrugada adentro.

Na letra da canção “Notícia de jornal”, Chico Buarque, esse cronista em verso e em letra de música do cotidiano brasileiro, escreveu que “a dor da gente não sai no jornal”. Claro que a constatação de Chico se refere ao texto da notícia-padrão, que é “fria”, destituída de pessoalidade; como produção, é um gênero em que o personagem de que fala a letra da canção de Chico Buarque é mais um, é tratado como um número a mais — ou a menos, dependendo do teor da notícia. Todavia, não é o que se dá quando se trata da crônica. Ela não tem o compromisso com a notícia nem com o fato como ocorrido, o que, por si, já começa a dar a ela ares de literatura, mas, a despeito desse não compromisso nem com a veracidade nem com os dados nem com os números é que a crônica foi se esgueirando em meio às páginas dos jornais, em meio a textos literalmente datados. Mostrando que era algo mais do que notícia ou, pelo menos, algo diferente da notícia, embora possa ser escrita a partir, também, de uma notícia, a crônica, com o passar das décadas, foi parar nos livros, sem ter deixado, contudo, de frequentar as páginas dos jornais e, hoje, dos blogues, das redes sociais ou dos sítios. Num mundo iconoclasta, que gosta de asseverar a morte de tudo, a crônica segue viva, continua sendo lida, debatida, divulgada. Como prova disso, basta mencionar que no sábado passado, durante a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, ocorreu o debate “Cronistas contemporâneos”. Com a mediação de Arnaldo Bloch, participaram do evento Fabrício Carpinejar, Raphael Montes e Afonso Borges. A própria organização da Bienal divulgou no sítio do evento o seguinte texto: “Alguns escritores parecem ter a capacidade de identificar, em meio ao cotidiano, os traços que definem a época e marcam a sensibilidade das pessoas: são os cronistas. Seus poderes de observação são um capítulo à parte na cena literária brasileira”. [2] O próprio Carpinejar, só para ficar num exemplo, escreve crônicas para a Revista da Cultura, periódico mantido pela Livraria Cultura. O Brasil citadino consagraria também no gênero crônica autores como Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Verissimo, Mario Prata, João Ubaldo Ribeiro, Fernanda Takai, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Lêdo Ivo, Stanislaw Ponte Preta, Lima Barreto, Antônio Maria e, claro, Fernando Sabino.

Contudo, antes de eu discorrer especificamente sobre o cronista pelo qual estamos aqui, permitam-me algumas cogitações sobre a crônica ser, não raro, tida como gênero menor. Não é minha intenção nem esgotar o assunto nem oferecer resposta cabal para a questão. Mesmo assim, recordemos, a crônica, do modo como mencionada aqui, nasce nos jornais. É para ser lida rapidamente. Amanhã ou na semana que vem haverá outra e depois outra e depois outra. A crônica não tem intenção nem espaço de se debruçar sobre temas que demandariam tempo para serem desenvolvidos. Não bastassem essas características, dependente do meio em que era veiculada, a crônica caiu no gosto do leitor de jornal, que nem sempre era o leitor da chamada grande literatura, nem sempre era o leitor do cânone. Mesmo hoje em dia, é muito comum alguém dizer que é leitor de crônicas ou dizer que tem na crônica o gênero favorito, mesmo sem se dedicar à leitura dos gêneros clássicos ou à leitura de autores canônicos. Um texto que não demanda erudição para ser apreendido nem demanda leitores acostumados a produções de maior fôlego. Essa é a crônica, que é, no mais das vezes, compreensível para qualquer um. Precisamente isso é o que pode fazer com que alguns torçam o nariz para ela. Haveria em função disso, por parte de alguns que se consideram representantes de uma suposta elite intelectual, a presunção de considerar a crônica como gênero menor por ela ser lida e apreciada por aqueles que não têm tradição de leitura. Essa empáfia, não somente no que diz respeito à crônica, sugere que o que cai no gosto popular perderia as prerrogativas de ser considerado arte verdadeira ou arte maior, atemporal. 

Não levo em conta essas arrogâncias. Vamos nos deter em algumas características que podem fazer com que a crônica se torne literatura. De antemão, digo que a brevidade não pode ser usada como argumento. Emily Dickinson está no panteão dos grandes poetas. A obra dela é composta por versos breves, epigramáticos. Se concordarmos, pois, que o caráter de literariedade não está na extensão do texto, podemos aventar possibilidades ao defendermos a crônica como sendo literatura.

Uma delas diz respeito ao não compromisso que a crônica tem quanto à verdade factual, quanto à abordagem jornalística. Ainda que o ponto de partida seja fato verificável, fácil de ser comprovado, o viés da crônica não é o do jornalismo, o de relato de onde, de quando e de como, embora tais informações possam estar no corpo dela. Não, a crônica não vai apenas relatar, por exemplo, que nesta semana os vereadores locais visitaram o Rio Paranaíba a fim de conferirem os estragos da seca no leito que um dia foi caudaloso. Isso, já noticiaram os sítios, o jornal, a televisão, as rádios. Mas a realidade é cheia de facetas. O mesmo evento permite várias abordagens. A do cronista é captar a partir das miudezas ou das não miudezas do cotidiano um texto que pode soar às vezes algo ingênuo, às vezes poético, às vezes opinativo, às vezes doce, às vezes saudoso. Nesse caldeirão podem estar o futebol, a política, a erudição, a conversa de bar, a amizade, o amor, a arte, a metalinguagem, a guerra... É curioso: não há receita para a crônica, não há amarras que a definam com precisão. Ainda assim, sabe-se reconhecer uma quando se está diante dela. O cronista diz de tal modo que ele pode ser uma espécie de poeta em prosa breve. Ainda que não seja oficialmente poeta, tem em si alma de poeta, carrega em si o senso poético, o senso do espanto, da estranheza, da análise por ângulos inusitados. É como se o cronista olhasse para as coisas não com o olhar desgastado e sem graça do adulto, mas com o espírito de quem contempla as coisas pela primeira vez. Essa atitude mental ou esse espírito acabam fazendo com que o cronista desvele ou revele para o leitor aquilo que esteve diante dele o tempo todo, mas que havia passado diante dele sem que ele se desse conta. O cronista é, antes de tudo, um observador, uma pessoa que presta atenção, que olha, que repara, que se debruça sobre a vida que passa, que anda de ônibus ou que namora num banco de praça.

É então que nos damos conta, graças ao cronista, que a vida do cidadão “anônimo” pode gerar literatura. O historiador Eric Hobsbawn, no imprescindível Pessoas extraordinárias, evidencia que a história não é feita somente por quem detém o poder. O cronista evidencia que para figurar na literatura não é preciso ser um rei, um presidente, um nobre, um rico. O vendedor da feira ou o padeiro são tão dignos de literatura quanto a realeza de algum país nórdico. Ainda que se concentre sobre um personagem assim, a crônica destacaria nele não a imponência do cargo que ocupa, mas aquilo que uma pessoa assim tem de prosaico, de acessível, por assim dizer. É o que Shakespeare fazia com seus personagens nobres, mostrando-os em situações engraçadas ou vexaminosas, é o que Tom Wolfe faz com seus personagens de Wall Street, preocupados em ter seu primeiro milhão de dólares antes dos vinte e poucos anos. O cronista sabe muito bem que antes do cargo ou da pompa há uma pessoa, um indivíduo, que compartilha pontos em comum com todos os demais indivíduos. Esses pontos em comum, é claro, não estão nos cargos que ocupam nem no dinheiro que têm nem no poder que detêm.

A crônica não está interessada em pseudomistérios, em construir teses, em dar resposta aos supostos desígnios do Universo. Um dos méritos da crônica é exatamente o de edificar literatura a partir do que é evidente e trivial. Se há algum mistério trazido pela crônica, esse mistério é o que existe em tudo. Um mistério que surge a partir do que é compreensível, alcançável. Num sentido amplo, o exercício da crônica é a edificação de uma literatura humilde, postura de quem não oferece uma resposta pronta, mas uma acessível inquietação com o sem-número de não respostas que todos carregamos em nossas idiossincrasias. A crônica se posiciona frente ao mundo não ao modo de quem se predispõe a destrinchar seus mecanismos, mas à maneira de quem tem olhar curioso diante das engrenagens. A crônica nem sempre dá respostas, mas com frequência tem questionamentos inquietantes e poéticos. 

A fim de ilustrar essas questões sobre as quais tenho teorizado, transcrevo a seguir a crônica “Notícia de jornal”, que extraí da coletânea As melhores crônicas de Fernando Sabino:

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome. 

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa — não um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De 30 anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

Morreu de fome. [3]

O texto, escrito a partir de notícia lida em jornal, segundo o narrador, exemplifica com perfeição o cerne da crônica, que é o de extrair do cotidiano o material de que é feita. Embora careça de alguns dados para ser considerado notícia de jornal, o texto, com pequenos ajustes, poderia ser jornalístico. Contudo, a leitura dele nos revela que há algo mais, que o relato não é somente uma notícia de jornal. O leitor pode até não saber esmiuçar o que diferenciaria o texto de uma notícia, embora intua haver algo a diferi-lo do gênero estritamente jornalístico. Tentemos destacar alguns procedimentos que fazem com que “Notícia de jornal” seja, num sentido afunilado, crônica, e, num sentido amplo, literatura.

De início, tem-se a reiteração, com pequenas variações, da expressão “morreu de fome”. Uma típica notícia de jornal anunciaria apenas uma vez a causa da morte. O tom seria o mais neutro possível. Uma notícia não chamaria o homem de “coisa”, não teria seu autor se perguntando “que é que eu tenho com isso?”, para depois, em sua retórica, afirmar: “Deixa o homem morrer de fome”. Esses são apenas alguns exemplos de que a crônica permite carga maior de subjetividade do que o texto jornalístico. Ela tem tido o jornal como suporte, mas jornalismo não é, mesmo sendo com ele confundido. Ou pelo menos não é só jornalismo. É também literatura. 

Tomemos outro exemplo. Um caso em que um grande poeta aparece, depois de ter consumido boas doses de álcool em Belo Horizonte, fazendo um comentário prosaico; mostra-se um lado dele que não diz respeito à excelência de seus versos, embora ele já fosse conhecido pelo estilo de vida boêmio que levava. Além disso, o que poderia ter se tornado uma digressão é logo interrompido, cedendo o lugar a afirmações bem mundanas, distantes do tom elevado que o texto poderia ter assumido. O trecho a que me refiro está na crônica “O menestrel do nosso tempo”. Por enquanto, não direi o nome do poeta que é mencionado no texto. Eis o trecho:

Era uma delegação de intelectuais que visitava Belo Horizonte, em 1943, a convite do então prefeito Juscelino. Em meio a tanta gente, ele era o poeta. E alta noite fomos ver a lua no Parque Municipal. Alguém apareceu com um violão: depois de um sambinha ou outro, ele começou a tocar — e a cantar! — ‘Blue moon’. Tomados de entusiasmo etílico, por pouco não celebramos o insólito acontecimento jogando Etienne Filho dentro do lago. Depois subimos a pé a Avenida João Pinheiro e já somos apenas três, em companhia do poeta de nossa admiração. Vamos para o banco de sempre na Praça da Liberdade, puxar uma angustiazinha:

— Que sentido têm as coisas?

— Que somos nós, diante da eternidade?

A alma encharcada de literatura até o rabo. Mas o poeta não deixa por menos:

— Bom mesmo é mulher. [4]

Por certo, muitos já deduziram que o comentário “bom mesmo é mulher” foi feito por Vinicius de Moraes. O comentário do poeta não somente confere humor ao texto: ele quebra o que poderia ter se tornado uma digressão de tom filosófico. No mais, esse suposto tom filosófico havia sido insinuado de modo tímido. Tanto é assim que o narrador se valeu da expressão “puxar uma angustiazinha”. Houvesse de fato a intenção de se levar a crônica para reflexão mais densa, o substantivo “angústia” não estaria no diminutivo. O narrador está quase a mofar de qualquer sentimento de inquietação que pudesse ter tomado conta dos amigos alcoolizados.

Todavia, não nos esqueçamos de que a crônica, em sua trivialidade, pode nos remeter a reflexões drásticas, contundentes. Para exemplificar o que digo, cito trecho de “A lua quadrada de Londres”, também de Fernando Sabino:

Lembro-me de uma história — história que inventei, mas que nem por isso deixa de ser verdadeira. Era um marinheiro dinamarquês, de um cargueiro atracado no porto do Rio de Janeiro por uma noite apenas. Saíra pela cidade desconhecida, de bar em bar, e vinha voltando solitário e bêbado pela madrugada, quando se deu o milagre: nas sujas águas do canal do Mangue, viu refletida uma claridade difusa — ergueu os olhos e viu que as nuvens se haviam rasgado no céu, e o Cristo surgira para ele, braços abertos, em todo o seu divino esplendor. Fulminado pela visão, caiu de joelhos e chorou de arrependimento pela vida de pecado e impenitência que levara até então. De volta à sua terra, converteu-se, tornou-se místico, acabou num convento. E anos mais tarde, depois de uma vida inteira dedicada a Deus, o monge recebe a visita de um brasileiro. Aquele homem era da cidade em que se dera o milagre da sua conversão.

— O que o senhor viu foi a estátua do Corcovado — explicou o carioca.

Não diz a história se o religioso deixou de sê-lo, por causa da prosaica revelação. Não diz, porque me eximo de acrescentar que, na realidade, depois de viver tanto tempo uma crença construída sobre o equívoco, este equívoco passava a ser mesmo um milagre, como tudo mais nesta vida. [5]

O que o marinheiro supôs ser uma epifania nada mais era do que a estátua do Cristo Redentor. Ora, precisamente esse tema está presente no filme O planeta dos macacos, de 2001, do diretor Tim Burton. No enredo, os macacos veneram um deus, que chamam de Calima. Próximo do término do filme, é revelado que a palavra Calima nada mais é do que sílabas de um aviso de segurança que havia numa nave. Os macacos louvavam um engodo. Nesse momento, é inevitável que o espectador pense nas religiões que a humanidade tem edificado para si. As implicações de que a crença em um deus pode ser fruto de um engano são poderosas demais. Exatamente essas implicações estão presentes no breve trecho da crônica de Fernando Sabino. Por trás do humor e da leveza do texto dele, há uma profícua possibilidade de reflexão.

Antonio Candido, em texto intitulado “A vida ao rés-do-chão”, elogia a crônica como gênero. Mesmo assim, no primeiro parágrafo de seu texto, pondera: “Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse”. [6] Eu não veria como contrassenso cogitar-se atribuir o prestigioso prêmio a um cronista, embora isso de fato nunca tenha ocorrido. Mas o que faz a literatura ser o que é não são os prêmios que por ventura ela venha a receber. A literatura é feita do que somos; o que somos pode ser mostrado a partir da caça a uma baleia, a partir de um homem que vê a estátua do Cristo Redentor e pensa estar diante de uma epifania ou a partir de uma pulga.
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[1] Melville, Herman. Moby Dick. Tradução de Pericles Eugênio da Silva Ramos. Círculo do Livro. 1994. P. 535.

[2] Disponível em http://bit.ly/2feGame. Acesso em 13/09/2017.

[3] Sabino, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. 5ª edição. Rio de Janeiro. BestBolso. 2015. Pp. 46 e 47.

[4] Idem. Pp. 58 e 59.

[5] Ibidem. Pág. 69.

[6] Candido, Antonio. A vida ao rés-do-chão. Disponível em http://bit.ly/2fbrODb. Acesso em 14/09/2017. 

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